Amar o lado torto
Uma pessoa me conta: “minha mãe sempre me achou avoado”.
Penso logo em um menino cheio de voo dentro e sorrio.
Afinal, casei-me com um homem assim, que vê detalhes que ninguém vê “por aí” e os fotografa para nos acordar. E que lindos são estes detalhes, assim amplificados.
Outra pessoa me diz “que é um E.T.” e nos divertimos pensando nas vantagens de sê-lo. Ver de um jeito diferente. Admirar estranhezas. Perceber nuances. Abrir-se ao novo. Ser sempre inédito.
Eu mesma ouvi muito: “você fala demais” e todas as piadas possíveis com minha tagarelice.
Não quis saber. Agarrei-me na ideia de ser um tipo de Emília de carne e osso e saí por aí falando.
Virei palestrante.
O olhar crítico do outro nem sempre é mal-intencionado. São conselhos para nos melhorar, pela ótica de quem não é quem somos.
Portanto, bem intencionado ou não, inócuo. Pois só sabemos ser nós mesmos.
Fingimos ser outras coisas, é claro. E isso traz muito sofrimento.
Tentamos fórmulas alheias para conseguir trabalho, amor, amizade.
No final, não dá muito certo.
Ou nem metade do que seria.
Se fosse do nosso jeito.
Mas qual é o nosso jeito?
Como ser E.T., avoado e tagarela com amor próprio? Se o gabarito alheio é tão duro e, ao mesmo tempo, confortante.
Ser desigual é bastante solitário, lembram de Flicts?
Pois bem, não vejo outra saída.
Além de abrir a porta para dentro.
Lá no fundo, onde não costumamos olhar, estão todos nossos tesouros.
A beleza de ser singular.
Imperfeitos.
Sempre.
Lembro-me do meu arquiteto, apaixonado pelo taco que destoa no desenho do chão do escritório. Ou sugerindo que ao invés de tentar substituir o puxador que Olivia jogou no lixo aos dois anos, simplesmente o substituamos com uma faixa escrita “Olivia”.
E este “defeito” de nossa cômoda vai nos lembrar de nossa filha pequena, desajeitada e metódica. Viu um “lixo” no chão e pronto, livrou-se dele.
E a cômoda segue sem puxador e ela segue linda, imperfeita e pura possibilidade.
Como cada um de nós.