O balde
A terapeuta sábia sugere: escreva.
Eu, sem saber por onde começar, adiei até hoje.
Até esbarrar no meu balde.
Aquele ali que trazemos conosco, onde vão se acumulando lágrimas, raivas, não ditos. Aquele balde pesado, que arrastamos balouçante pelos corredores da existência. Denso de mágoas e águas.
Aquele balde que aos poucos se enche.
No começo as gotinhas se ouvem sutis, num som metálico.
Depois já é som de poça d’àgua sendo pisada por pés ligeiros.
Até o dia em que o barulho é grave. Pedras afundando num lago sem fundo. Ploooft.
O balde está cheio.
Já não é possível ignorá-lo. A água escorre pelas bordas, nas horas mais inconvenientes.
A tensão da água contra a borda é fria e dura.
Sinto a força das águas empurrando para fora, respingando dores.
Meu balde é muito grande, descubro.
Cabem nele oceanos até.
Mas, de uns tempos para cá, deu para transbordar.
Pode ser a turbulência do mundo, rescaldos da crise de autenticidade antroposófica dos 42 anos. Pode ser a humildade chegando, de que não vou transformar tudo e todos como um dia delirei.
Pode ser cansaço com insignificâncias e vontade de varrer para fora tudo que não é bom.
E também, certamente, tem a ver com o que é profundamente importante e anda pontudo, arestas ferindo dentro e fora.
Olho para meu balde cheio e ele me olha.
Sento no chão, suspiro fundo e o abraço.
Aprendi a amar este balde.
Tentar ficar com ele, nadar dentro dele, algo inédito para mim.
Refrear as pernas mães de jogador de futebol.
Fico com este balde e mansamente, tento escorrer seus excessos.
Dias bons, dias não tão bons, onde ele é também âncora e barco.