Viver mais simples é, de tempos em tempos, revisitar decisões.
É crucial abrir mão do que não é importante. E igualmente importante repensar estas escolhas, para não congelar em novas verdades.
Dentro deste espírito, de vez em quando faço um experimento breve como motorista.
Desta vez, aluguei um carro para o período de férias.
Dirigir não é mais automático para mim. Quase nunca o faço, pedestre e usuária do transporte público que sou.
Mas foi bom retomar o volante, para reavaliar não ter carro como estilo de vida.
O início é difícil. Desacostumei-me à violência do trânsito, especialmente num Rio de Janeiro em ritmo de festas. Caos estressado de pacotes e pressas.
Surpreendo-me com a rapidez com que uma Neanderthal se apossa de mim. Quando vi, já estava piscando farol e mudando de faixa, irritada com os “lentos”.
Aí, respirei.
Já é estressante ter que encontrar vaga, “dialogar” com flanelinhas, esperar paciententemente por um fluxo que se interrompe com carros em fila dupla, curiosidade de ver acidentes e outros afins.
Retomei minha civilidade e decidi fazer do tempo-motorista um experimento mais tranquilo.
Peguei a terrível BR101 e naveguei sem pressa por entre caminhões e carros velhos.
Minha temperança foi premiada. Cheguei a São Paulo numa preguiçosa véspera de ano novo, ruas vazias, quase uma cidade de interior.
Pondero o que gosto no dirigir: a estrada vazia, as paisagens, repassar lugares queridos.
Ou seja, quando posso estar presente, dirigir é uma delícia.
Mas sou realista. No dia a dia das grandes cidades, é muito difícil perder-se com gosto, entre buzinas, buracos e outras hostilidades.
Portanto, ainda viverei momentos-motorista até o final de janeiro, mas elegi que por ora seguirei pedestre.
E para você que escolheu diferente, recomendo uma boa trilha sonora para manter a adrenalina sob controle…
Trânsito
Lenine e Arnaldo Antunes
“os curiosos atrapalham o trânsito
gentileza é fundamental
não adianta esquentar a cabeça
não precisa avançar no sinal
dando seta pra mudar de pista
ou pra entrar na transversal
pisca alerta pra encostar na guia
pára brisa para o temporal
já buzinou, espere, não insista,
desencoste o seu do meu metal
devagar pra contemplar a vista
menos peso do pé no pedal
não se deve atropelar um cachorro
nem qualquer outro animal
todo mundo tem direito à vida
todo mundo tem direito igual
motoqueiro caminhão pedestre
carro importado carro nacional
mas tem que dirigir direito
para não congestionar o local
tanto faz você chegar primeiro
o primeiro foi seu ancestral
é melhor você chegar inteiro
com seu venoso e seu arterial
a cidade é tanto do mendigo
quanto do policial
todo mundo tem direito à vida
todo mundo tem direito igual
travesti trabalhador turista
solitário família casal
todo mundo tem direito à vida
todo mundo tem direito igual
sem ter medo de andar na rua
porque a rua é o seu quintal
todo mundo tem direito à vida
todo mundo tem direito igual
boa noite, tudo bem, bom dia,
gentileza é fundamental
pisca alerta pra encostar na guia
com licença, obrigado, até logo, tchau.”