Saúde é a maior liberdade

 Em 2020

A experiência de passar dias sem sair de casa, nem sequer abrir a porta, abriu janelas inéditas por aqui.
Por um lado, as possibilidades e necessidades que emergem desta contenção de espaço e ampliação de tempo.
Do outro, a angústia de não fazer atividades familiares e triviais como ir ao supermercado toda vez que acaba a farinha; marcar um café com amigos, visitar a madrasta 60+.
Gestos e práticas automáticas (e portanto invisíveis) se revelam preciosas. Nunca tinha me preocupado com o impacto de apertar o botão do elevador e depois roer as unhas…
A vida do outro também nos comove. O filho ilhado sem os amigos; o marido saudoso da roda de samba; a filha caseira que perde a janela de vida lá fora oferecida pela escola e o basquete.
A luta inglória pela tal da rotina: nem sempre consigo acordar bem no horário de fazer o café da manhã. Quase nunca durmo cedo o suficiente. E com frequência o sono é agitado.
As conversas profundas acontecem mais amiúde: é preciso negociar e renegociar diferenças com mais urgência, por estarmos mais espremidos por dentro e por fora. Sair para espairecer não é opção…
Mas este parênteses da pandemia se insere numa vida maior. Perdi meu irmão caçula. Há negócios de família requerendo discussão. Há sonhos querendo nascer e trabalho precisando ser feito.
E conciliar a vida dentro da vida traz também seus desafios, dores e aprendizados.
Primeiro, a gratidão. Precisava do recolhimento para processar a magnitude da saudade que sentia desde janeiro. Não há superação possível, nem cura duradoura. Mas poder deixar minha dor passear com mais amplitude me devolveu ar aos pulmões.
Depois o reconhecimento das bençãos que eu não andava cultivando muito bem: conversas longas com amigos. Ler um livro. Cozinhar. Jogar cartas e conversar com a família.
Tudo que poderia ser feito antes da pandemia. E não era.
Enfim, estar on-line comigo 24 horas. Os refúgios habituais estão relativamente suspensos: o trabalho mais limitado, as tarefas mais concentradas. Dialogo sem parar com meus medos, minhas angústias, meu luto, minha ansiedade, minha raiva. Tomo tempo para digerir, registrar e até voltar a escrever neste empoeirado blog.
Não vejo na pandemia um bálsamo. Contudo, tampouco me ressinto desta inesperada mensagem da natureza sobre nossa vulnerabilidade e insignificância.
Entre atônita e resignada, busco ficar no presente e compreender o tamanho desta transformação dentro e fora.
O que verdadeiramente dói é o descaso de uma parte da população. A falta de entendimento de muitos sobre o preço de não enfrentarmos o isolamento social. Especialmente nós, que podemos nos dar este verdadeiro luxo de não sermos obrigados a nos expor.
Nós que não somos funcionários da farmácia e de mercado. Que não estamos na linha de frente dos hospitais. Que não somos a infraestrutura que mantém a cidade limpa, com entregas em dia e comida na mesa.
Nós, que temos o privilégio de uma casa, uma renda e a opção de não estar lá fora.
Nós precisamos fazer nossa parte, que é a mais fácil. Mais fácil porque a solidão e o tédio são baratos versus a doença e a morte.
E nem sempre será a nossa doença e nossa morte. Será quase sempre a do outro: mais idos@, mais frágil ou simplesmente, mais azarado do que nós.
Hoje somos pássaros engaiolados. Ansiosos e irritados.
Mas estamos vivos e quando este tempo passar, poderemos novamente voar.
Não podemos roubar dos outros esta possibilidade. É um fardo muito pesado, disseminar o vírus invisível por aí.
Sim, eu chorei outro dia ao dirigir de janelas fechadas por uma orla belíssima do Rio de Janeiro. A saudade de um banho de mar e um vento fresco doeram fundo.
Anseio por ir e vir, tomar o metrô, conversar com o moço do Uber até.
Esta é uma liberdade importante, sem dúvida.
Mas a maior liberdade é a saúde.
Sem ela, não há dinheiro, poder, sonho ou boa intenção que sustente.
E quanto mais tempo, mais de nós ficarmos em casa, mais cedo poderemos desfrutar de nossa liberdade.
Fiquemos em casa, portanto.
Fiquemos por nós e pelo outros.
Pelos pacientes de doenças que precisam de um leito agora indisponível. Pelas mães e pais que gostariam de se despedir de seus filhos mortos. Por médic@s e enfermeir@s que se sentem impotentes diante da falta de recursos e do excesso de doentes.
Fiquemos em casa por humildade e reverência a esta Natureza maior do que nós. Este coletivo, maior do que nós.
A saúde é a maior liberdade. E tod@s tem direito à liberdade.

#Fique em casa.

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