Viver Mais Simples

Sobre bordas e transbordos

Acordo com um dia mais livre do que o habitual.
Tenho sono: as noites têm sido conturbadas. No entanto, já aprendi que tentar adormecer de novo não descansa meu corpo, então começo o dia com vontade de escrever.
E o tema são bordas. Fronteiras que mantém a vida possível em tempos imprevistos e surreais.
As rotinas são bordas que contém os mares turbulentos que me habitam. Especialmente durante o isolamento social e à luz das notícias preocupantes de todos os dias.
O esforço é modular estas bordas. A permeabilidade, a rigidez, a densidade.
O que deixar entrar?
Conversas amigas curam. Encontros e reencontros, gestos de amor e amizade. Relatos solidários, dicas de séries, trocas de sentimentos, partilha de desafios comuns. Lembrar que somos humanos e não estamos sós.

Já as notícias tem sabor agridoce. Claro, é preciso conhecer o que é seguro e o que é permitido. É útil acompanhar a ciência e também questionar a ciência. Tudo são certezas provisórias e é crucial ler com espírito crítico. Informações ajudam neste sentido (o difícil é eleger as fontes).
Do outro lado, os conflitos de ponto de vista, a dor e raiva causada pela desorientação (ou mau caráter) de nossos governantes, as hesitações e agendas ocultas que nos tolhem de uma direção firme rumo a sair desta crise. Recortes que alimentam a desesperança e aumentam a ansiedade.
Agridoce. Ainda não consigo modular a quantidade a ser ingerida.

Trabalho também é borda. Mas a capricorniana precisa ser vigiada. Percebo abusos no tempo de estar encerrada no escritório improvisado no quarto de empregada.
Mas o que eu faço, além de ocupar os dias, me dá um senso de propósito. Poder contribuir, mesmo que um pouco, faz valer a pena e reduz o senso de impotência.

Amar, este é sem contra-indicação. Que os limites estão postos. Juntinhos, só com o marido e filhos. Os outros tipos de amor são por telefone ou computador. E para alguém desmedida em estender o braço, estas novas bordas são bem-vindas. Mesmo com tanta saudade de abraços.

Transbordo.
Choro mais do que o habitual. Roo mais as unhas. Como mais chocolate.
Converso mais e longamente com cada pessoa amiga. Presto mais atenção em cada filho. Tudo me emociona.
Escrevo mais neste blog.
Respondo longamente aos pedidos dos amigos: uma opinião sobre o vídeo da consultora de cosméticos. Um olhar sobre o texto da amiga terapeuta.
Tenho tempo e saudades. Por isso me alongo.
Transbordo novidades também.
Aprendi a ouvir podcast. Inclusive este texto dialoga com o podcast da amiga.
Aprendi a amar áudios no WhatsApp. A voz das pessoas é um tesouro.
Aprendi novas receitas: leite de amêndoas, leite de côco, bolos, moqueca de forno.
E tenho fome de aprender: estudo tarô, facilitação on-line.
Também crio espaço para ser mulher selvagem.
Leio mais. Costurei as peças que pediam linha e agulha. Renovei o guarda-roupa de peças íntimas (na loja da outra amiga). Pintei as unhas do pé. Faço colagens. Cozinho como as avós e as mães. Arrumo a casa de tempos em tempos.
E escrevo escrevo escrevo.
O corpo, estou ainda aprendendo a cuidar. Reluto com as aulas on-line de Eutonia e Pilates. Quase morri sem fôlego ao jogar uma partida de badminton com o filho, na quadra improvisada na sala. Mas vamos tentando de outros jeitos.

Entre bordas e transbordos, revisito o viver mais simples; faço novos pactos comigo. Às vezes, é bom. Outras, é demasiado. Não preciso decidir.
Avanço passo após passo, confiando na intuição e traçando novas rotas dentro de um oceano confinado.

Presto atenção no movimento dos planetas, nos médicos e no pulso de meu coração.
Um dia de cada vez. Vestindo algumas máscaras e despindo outras.
A vida entre bordas e transbordos segue o ritmo das marés e acolhe tsunamis.
É tempo de descobrir fundos, dentro.

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