Tranquilo, Lê
Acordo angustiada.
Há dias estou isolada em meu quarto, esperando um episódio de Covid, relativamente assintomático, passar.
Nos últimos dias, uma avalanche de emoções, embaladas por influências lunares, solidão e a inatividade que pouco convém a esta capricorniana.
Os humores, mutáveis como as marés, navegam do pessimismo mais obscuro á rósea esperança, passando por medo, tristeza, raiva e alegria.
Sinto-me saudosa de muitas coisas.
De tudo, a conversa com a amiga de infância, me trouxe você.
Ela me chama de Lê, como você chamava.
Não consigo me concentrar em nada, inclusive o livro esperando revisão. Por sorte consigo ler o breve texto da cliente querida, onde mora a dica do aplicativo “How we feel“.
Seguindo a intuição, abro a primeira página onde sou convidada a escolher o que sinto no momento. Escolho apreensão.
Na sequência, uma dica de estratégia: “Invoque o seu Yoda”. Acho engraçado a coincidência, Yoda sendo meu gatinho-anjo querido e também uma figura que sempre evoco na frase Do it, or do it not: There is no try.
O guru virtual sugere que, á luz do que estou sentindo, eu pense em um “mentor” que possa me ajudar a atravessar esta apreensão. Imediatamente, penso em você.
As opções são escrever um texto ou marcar uma conversa. Por motivos dolorosamente óbvios, escolho a primeira. E cá estou, dialogando contigo, meu irmão-mentor, meu Yoda nada rabugento.
Imagino que você me olharia com seus olhos castanhos e diria: “tranquilo, Lê”. Você nunca foi de dar muito conselho, o ariano mais altruísta e pacífico que conheci. Mas seus gestos sempre foram de paz, evitar brigas desnecessárias, se preocupar o mínimo possível. Rir, amar, brindar á vida e ser feliz constantemente.
Esta era sua receita. E até certo ponto, vinha sendo a minha. Perdi o passo por um segundo, confesso. Ou algumas semanas.
A vida tem sido boa, no amor, no trabalho, em família. Leia, a gatinha nova, finalmente se aproxima da Padmé e aparentemente eu acertei na aposta de que duas gatas são mais felizes do que uma.
O amor cumpriu seis meses, com ajustes e desafios frequentes, claro. Ao mesmo tempo, a releitura de trechos do nosso histórico de conversas deixa bem evidente que o carinho viceja e o futuro promete.
Os seus sobrinhos, maior tesouro da minha existência, florescem. Os espinhos inevitáveis destes roseirais não eclipsam a beleza das flores de veludo que brotam a cada dia.
O trabalho, cada vez mais potente, mais curativo, mais feiticeiro, flui caudaloso. Ainda me preocupo com as contas no fim do mês, a herança de vovô e papai é forte… Ao mesmo tempo, 2023 tem se provado um ano generoso nas parcerias e nas recompensas.
Contemplo, tomando emprestada sua serenidade, o rio corcoveando de emoções em meu coração.
A vida é incerta, há tarefas a serem cumpridas: o check up, o livro, as vacinas dos humanos e felinos. O amor é incerto. O trabalho é incerto. Tudo pode estar por um segundo.
Ainda assim, lembro de teu sorriso. Tua capacidade de manter-se calmo mesmo diante do inimaginável. Sua gratidão infinita e seu olhar eternamente otimista, mesmo quando tanta coisa havia lhe sido tomada.
A apreensão se transmuta numa tristeza cálida, quase boa. Eu precisava do descanso, da pausa. Abrir os olhos dentro deste lago de águas imóveis me assusta. Sou mais familiarizada com o movimento de escalar pedras e derrubar muros.
Hoje inventei uma palavra: dilemática. Estou dilemática. Apertada entre encruzilhadas que eu mesmo crio, elaborações de minha mente incansável e obsessiva. De repente, o ruminar se converte em oportunidade. É tempo de espera, esperemos.
A amiga propõe um deadline de janeiro para algumas das decisões que me afligem. Provavelmente é boa ideia.
Vejo você menear a cabeça em acordo, com aquele sorriso sábio de quem sempre soube levar a vida de forma mais sábia do que eu, até quando era inconsequente.
Eu, levo tudo a ferro e fogo, por isso sofro tanto.
Você, aceitava as coisas e pessoas como elas são, por isso era tão querido. É tão querido.
A tristeza acalenta meu coração kintsugi. Tanto passo no vazio, tanta porvir, tanta possibilidade.
E ao mesmo tempo, será que vale a pena me espremer tanto quando amanhã pode ser nunca?
Degusto o café da manhã preparado pela filha e trazido no quarto. O aroma de camomila e mel conforta os monstros que pulam em meu peito.
É dia de sol. Estou viva, mesmo isolada entre quatro paredes.
Tranquilo, Lê. Tudo isso vai passar.