“Na primeira noite eles se aproximam
e roubam uma flor
do nosso jardim
E não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem;
pisam as flores,
matam nosso cão,
e não dizemos nada.
Até que um dia,
o mais frágil deles
entra sozinho em nossa casa,
rouba-nos a luz, e,
conhecendo nosso medo,
arranca-nos a voz da garganta.
E já não podemos dizer nada.”
Eduardo Alves da Costa, poeta niteroiense
Alguma coisa mudou.
Há anos eu não lia jornal, á margem das manchetes de corrupção, injustiça e crueldade.
Não compactuo nem agora nem antes com isso. Mas a aparentemente indestrutível inércia de uma sociedade que tudo perdoava havia me engolido.
Era eu também uma passiva e desesperançosa espectadora das bandalhas do país.
Até esta semana.
No começo, eu acompanhava curiosa a movimentação dos jovens, suas camisas brancas e suas palavras de ordem.
“Quem não quer aumento, salta”.
Naveguei por entre eles como uma estrangeira curiosa, apesar do peito repleto de lembranças de movimentos passados, das Diretas Já, de pleitos da época de estudante.
Aos poucos, minha atitude diante da política foi se transformando.
Tomei conhecimento de atrocidades que já não passaram como nuvem diante meus olhos.
Fui percebendo meus amigos aderirem. Alguns indo á passeatas, outros ativamente publicando nas redes sociais. Todos mobilizados.
E sem perceber, o peito acordou e a voz que estava engasgada quis falar.
Comecei do jeito mais fácil, postando no facebook.
Até ontem.
Estava dentro da minha casa e começou uma correria, uma gritaria.
Minutos depois, gás lacrimogêneo invadia minha janela. Meu filho assustando, gritava para mim: “Eu vou morrer? Olivia vai morrer?”.
Acalmei-o. E fiquei até de madrugada tentando entender como fazer algo por este meu país tão maravilhoso e cheio de equívocos.
Aos poucos, vem uma ideia. Participar de forma mais organizada de alguma causa. Conquistar algo específico e importante para mim e minha nação desperta.
Pode ser que a rua seja um caminho, mas concordo com alguns lúcidos amigos que apontam a dispersão de objetivos como um risco de ficar tudo por isso mesmo, quando a energia de ir para a rua acabar (ou na infeliz hipótese de tanto gás e bala de borracha causarem estragos maiores).
Combater a PEC 37, que pretende diminuir poderes do Ministério Público. O objetivo é que ela não seja aprovada.
Retirar Marco Feliciano da Comissão de Direitos Humanos, como ato simbólico contra o preconceito e o retrocesso no respeito à diversidade de escolhas. Não pude acreditar quando ouvi o termo “cura gay”. Muito menos num projeto que de certa foram o legitime. Inaceitável.
Ainda estou estudando como fazer de fato algo sobre estas duas causas. Algo concreto, transformador.
Aceito sugestões.
E espero que meu peito desperto continue atento e forte. Ainda temos muitas outras causas. A Copa superfaturada. A velha elite política se refestelando enquanto minha empregada leva seis meses para conseguir um médico.
Estou buscando um caminho possível. Vamos de mãos dadas.
“Não serei o poeta de um mundo caduco.
Também não cantarei o mundo futuro.
Estou preso à vida e olho meus companheiros
Estão taciturnos mas nutrem grandes esperanças.
Entre eles, considere a enorme realidade.
O presente é tão grande, não nos afastemos.
Não nos afastemos muito, vamos de mãos dadas.
Não serei o cantor de uma mulher, de uma história.
Não direi suspiros ao anoitecer, a paisagem vista na janela.
Não distribuirei entorpecentes ou cartas de suicida.
Não fugirei para ilhas nem serei raptado por serafins.
O tempo é a minha matéria, o tempo presente, os homens presentes,
a vida presente.”
Carlos Drummond de Andrade