Uma vida feliz
Hoje é aniversário de minha avó Regina. Seriam 90.
Vovó já subiu para o andar de cima há 26 anos, mas segue uma referência crucial na gestação de quem eu sou. Minhas mechas cada vez mais grisalhas são um lembrete constante de suas lições inesquecíveis, seu amor infinito, sua brandura e aconchego.
Fazia tempo que a saudade não vinha tão aguda. Mas a data redonda, o tempo confinado, a saudade das avós de meus filhos… Tudo isso contribuiu para remexer o baú de memórias. E que memórias.
Minha avó me recebia em sua casa em Campos, bananinhas envoltas em papel alumínio na gaveta do móvel da sala. Bem baixinho para os netos alcançarem.
Ela era uma avó que trabalhava, ia na Avenida Pelinca fazer compras e resolver coisas. Minha avó enviuvou aos 33 anos, grávida da sexta filha e nunca mais se casou. Por isso, sempre foi a provedora e resolvedora de tudo. Tinha a ajuda luxuosa de Cirley, seu braço direito. E sabia lidar com paciência com a mau-humorada funcionária. Entre as duas, eu me senti em casa, protegida, num mundo realmente mágico.
Ainda me recordo da máquina de costura com seus carretéis. Anos antes de eu mesma experimentar esta arte. Dos livros que nunca mais vi em nenhum outro lugar, com histórias fascinantes e capas grossas. Eu os revisitava todas as férias, sem nunca enjoar.
A comida e as refeições sempre foram um ponto alto. O almoço de bife acebolado, croquete de banana, arroz, feijão e salada de alface temperadinha. Ainda me lembro de Cirley martelando os bifes, incansável.
Á tarde, pão francês, queijo prato e café com leite. Lanches deliciosos, com muita conversa e bons conselhos.
Eu tive um namorado em Campos, aos 17 anos. E dei muito trabalho a esta avó, mas que privilégio este convívio! Ela já deve ter me perdoado a esta altura. E eu, sou cada vez mais grata por tudo.
O quintal da vovó era de cimento e tinha plantas. Eu experimentava as folhas, ficava fascinada com a mangueira e as buganvílias, estas últimas “emprestadas ” da vizinha. As raízes, do outro lado do muro. As flores, generosamente derramadas em tons de rosa e lilás.
Vovó tinha muitas amigas mais jovens e eu frequentava suas casas, para brincar com as filhas da minha idade. Hoje percebo esta capacidade de minha avó fazer amizades com todo o tipo de gente, homem, jovem, solteiro, casado. Era uma rainha também em relacionar-se com o outro.
Ela me mostrou o valor de ter um trabalho. Nasci quando ela tinha apenas 40 anos, então pude vivenciar uma avó na ativa, indo e vindo do Liceu em Campos. Uma lição para mim, que até hoje adoro trabalhar e ser mãe, tudo misturado. Como ela.
Minha avó abria portas. Assim me presenteou com a primeira edição do livro de poemas, no ano em que meus pais se separaram. Ela sempre incentivou meus talentos. Com ela, eu me sentia segura, especial, invencível.
Á noite a famosa esponjinha, para que a neta cansada não tivesse que tomar outro banho. Cuidado, carinho, na medida certa.
Também se permitia seus prazeres: retiros sem a família, a prática do Yoga, telefonemas intermináveis num tempo em que isto era bem caro… E o Roberto Carlos, paixão até o fim.
Eu não sabia do tanto que minha avó tinha sofrido na vida. Só me dei conta já adulta. Perdeu a mãe de forma trágica, ainda criança. Depois, a viuvez precoce, quando minha mãe, filha mais velha, tinha apenas nove anos e a mais nova, ainda estava na barriga. Um filho morreu antes dos 35, como o marido dela. Um irmão querido perdido cedo para o câncer. Histórias de dificuldade financeira, renascimento, luta. Travessia que só foi possível pela fé, humildade em receber ajuda e muita frugalidade. Minha avó era uma mulher de pouca vaidade, muito trabalho e muita dedicação aos outros. Passou a vida retribuindo tudo que recebeu quando foi viúva e os amigos do marido falecido vieram acudir.
E ainda assim, quando minha filha me perguntou: “Mas ela teve uma vida feliz”. Eu sorri e chorei, convicta: “sim, ela teve uma vida feliz”.
Hoje eu tenho 47 anos e estou confinada em minha casa, enquanto o Brasil segue firme para a liderança de casos e mortes por Coronavírus. Acompanho triste a conversa da mesma filha com uma coleguinha, as duas sofrendo com a incerteza, a falta de senso alheio e a negligência de nossos governantes.
De onde eu tiro a coragem para seguir acreditando na vida, na Humanidade, no Brasil? Deve ser da minha avó Regina.
Imagino minha avó, nas noites mais sombrias de sua vida. Deve ter sido escuro e frio ali. E ainda assim, minha memória é dela pacífica, grata por tudo, suave.
Intuo que nas minhas própria noites mais geladas, é ela quem me cobre com sua coberta de esperança, resiliência e fé. Ela que sempre celebrou a beleza dos encontros, a festa de estar junto, a alegria de partilhar. Enrosco-me neste cobertor bem quentinho de lembranças de minha avó. Fortalecida pelas léguas que ela caminhou, me disponho a caminhar mais um passo.
A voz da bisneta se repete: “Ela levou uma vida feliz?”.
E eu sorrio, entre lágrimas de saudade. Sim. Uma vida feliz não se faz de eventos felizes. Se faz de inteireza nas escolhas, generosidade e paciência.
Peço mansidão e humildade para, ao fim de minha vida, poder dizer alto e claro:
Sim. Eu também levei uma vida feliz.
Nem meus mortos, nem os desafios mais duros, nem os descalabros dos outros me roubarão esta alegria enquanto eu puder beber da fonte inesgotável do legado de minha avó Regina.