Vivo em mim
Oi, Pai.
Hoje faz 72 anos que você nasceu.
Celebraríamos num jantar em família, você entre radiante de estar com a gente e rabugento, para manter a fama…
Imagino seu ponto de vista sobre tudo o que está acontecendo. Seu convite para mantermos a calma, nos mantermos unidos. Suas perguntas e seus conselhos.
Com sorte, seria um daqueles dias em que eu faria um cafuné na sua cabeça calva e você me daria um sorriso de lado. Eu ou um de meus irmãos faríamos uma brincadeira implicante contigo e você sorriria entre tímido e desajeitado.
Suspiro.
Aceito a inevitabilidade da vida morte vida, que leva pessoas que eu amo e traz novos desafios de adulta. Eu querendo descansar e a vida me beliscando.
A tristeza corre mansa, quente e funda aqui dentro. Não tive tempo ainda para chorar todas as lágrimas. Você, Caio. Tão perto um do outro.
Fiz o que tinha que fazer: estendi a mão, fui firme, segui em frente.
Mas também fiz o que podia fazer. Tardes enrodilhada em mim mesma, segurando o meu próprio coração. Um desejo de ser mais eremita, inédito. Uma paciência e capacidade de perdão crescentes.
O cansaço é também bom professor.
Minha teimosia é desafiada pelas ondas altas, pelos pequenos e grandes revezes, pelo atordoamento com o estado das coisas no mundo.
Eu poderia estar com um grande torcicolo de esticar meu pescoço para tentar entender e alcançar a complexidade da pandemia, das guerras e ódios. Meu luto me salva.
Retorno para dar colo a mim mesma, desligo o noticiário e telefone. Sou só eu e todos os meus mortos aqui dentro de mim.
Não tenho raiva de Deus nem lamento injustiças. Foi o que foi.
A cicatriz larga, do tamanho de meu amor por você, se chama saudade.
A lista de tarefas segue grande, o mundo lá fora me chama com o trabalho, a maternidade, os cuidados com os outros que precisam.
Mas por um instante, sou eu, menina de novo, ouvindo suas histórias, aprendendo a ser gente grande a partir de seus passos, questionando e desafiando você, me afastando e me reaproximando.
Por um instante, sou apenas sua filha. Todos os outros papéis empilhados no canto do escritório.
O ar torna-se oceano mais uma vez. Avanço lentamente, sabendo que não há outro jeito.
Sem urgência em chegar a algum lugar.
Respiro gratidão, lágrima salgada e resignação.
Hoje é mais um dia sem você.
Hoje é mais um dia com você.
Sempre sua mais velha, irreverente, leal e cheia de asas filha.
Asas que você me ajudou a formar com seus nãos e sims.
Minha saudade é para sempre. Meu luto é para sempre. Meu coração é para sempre.
Seu.
Que bonito ver seu desenvolvimento a partir das experiências com seu pai presente e ausente. De alguma forma seu luto cai sobre mim de uma maneira que me liga mais a meu próprio pai. Gostaria que vc soubesse desse efeito que sua manifestação amorosa me causou. Um efeito paralelo de alguém que se importa com o mundo. Um beijo.
Ah, querido Sérgio. Seu senso de justiça e seu olhar observador também me lembram meu pai. E assim, nesta valsa de afetos, vamos dando conta de enriquecer nossas vidas, mutuamente!